O PALCO DAS FALTAS

Ouvira tempos atrás a declamação de um poema cujos versos principais diziam que nada tinha poder maior de colocar a gente pra pensar do que uma janela de ônibus. “Janela de ônibus é um trem danado pra colocar a gente pra pensar.” Virada de ano é pior, pensa ela.

E foi assim que ela passou aqueles últimos segundos do ano. Pensando, pensando e pensando. Olhou ao redor e tudo que enxergou foi a falta. Tudo que faltava lhe saltou aos olhos de uma vez só, como um insight de set terapêutico e a vazão foi pouca pra tanta revelação.

Um dia que podia ser como outro qualquer, uma mudança de hora que podia ser como outra qualquer se torna uma coisa grande e quase sem sentido. Foi como passou a virada. Gritando que nem louca, vestindo branco e pensando repetidamente: “Por que diabos estou aqui participando desse ritual maluco que, afinal de contas, não vai mudar nada?”

Olhou ao redor e a falta lhe atravessou como uma flecha. A alegria dos ânimos alterados pelos diversos graus de embriaguez até tentava disfarçar, mas para os olhos dela, treinados em enxergar além, não deu pra passar despercebido. A falta era o que mais estava presente ali. Ironicamente, entre as cores.

Sim, as cores denunciavam todas as faltas daquela festa. Entre risadas e flertes, entre tropeços e esbarrões, o que gritava mais alto que a música da moda era a falta que as pessoas sentiam de algo. E era tanta vulnerabilidade que ela até sentiu certa pena dos passantes.

A moça de rosa, com seu vestido justo, salto 15 e uma maquiagem impecável deixava saber que sentia falta de amor. O rapaz de blusa amarela devia estar com dívidas ou tinha sonhos que o seu dinheiro ainda não podia bancar. Até a moça da barraca, aparentemente casada com o rapaz que dava mole para todas as clientes, usava uma blusa vermelha, o que podia fazer pensar que o marido não andava lhe dando a atenção que desejava.

Curioso que as pessoas não se dão conta de que passam o ano todo evitando mostrar vulnerabilidade pra chegar num dia como outro qualquer e escancarar tudo. Assim de mão beijada, para uma plateia de estranhos que, por sorte, ou estão bêbados demais pra perceber ou são pouco observadores.

A gente devia perceber a falta todos os dias. A gente devia se dar conta da falta todos os dias. E buscar pelo que falta em todos os dias, sem esperar que uma data “mágica”, um ritual de cores e uma roupa qualquer faça o que é nossa atribuição.

A gente também devia deixar de lado essa coisa de evitar mostrar a vulnerabilidade e de se mostrar como super-heróis, do tipo que dá conta de tudo.  Ali, no meio daquele povo todo, ela era só humana. Vestiu branco porque queria cumprir o ritual, mas não costuma ter medo de se mostrar, embora o preço a se pagar por isso seja muito caro.

Ao fim da contagem regressiva, ela fez um desejo. Foi um avanço para quem costumava listar quinhentas coisas numa lista de Ano Novo IMPOSSÍVEL de realizar. Seu primeiro e único pedido pra 2019 foi poder se mostrar vulnerável sem o risco de se perder nesse mundo de futilidade e de jogos de esconde-esconde que podem ser os relacionamentos humanos.

Parece impossível ou utópico, ela sabe. Mas é uma otimista e, acima de tudo, uma romântica. Querer extrair o melhor do mundo é seu pior defeito, assim diz ela. Há quem diga que não é defeito, mas quem sabe é ela, né?